Quis o destino quase erradio desse cronista que beira a terceira idade que eu desse com os costados em Roraima no ano de 2002 e depois recentemente no ano passado.
Por Ricardo Soares*
E, de repente,um ponto ermo do território brasileiro ganha visibilidade. Pacaraima, lá em cima no nosso mapa, na fronteira com a Venezuela, última cidade do estado remoto de Roraima que, infelizmente, só entra no noticiário quando o assunto é corrupção, invasão de terras indígenas, funcionários fantasmas e políticos da pior extração possível como Romero Jucá.
Quis o destino quase erradio desse cronista que beira a terceira idade que eu desse com os costados em Roraima no ano de 2002 e depois recentemente no ano passado. Na primeira passagem pelo estado fiquei três meses a trabalho e pude levar comigo gente amiga e competente para uma faina calorenta, trabalhosa e divertida que nos levou à tal fronteira que hoje é inserida no mapa geopolítico mas que até então era apenas um ponto irrisório no mapa.
Pessoalmente estive na fronteira Pacaraima - Santa Elena de Uairén três vezes. Dois bate-voltas de Boa Vista até lá (cerca de 200 kms) e uma terceira incursão onde rompi Venezuela adentro ruma a Isla Margarita num Palio branco cruzando a belíssima savana da Gran Canaíma.
De Santa Elena, na época citada, me lembro das cervejas geladas (marca Polar), dos bons restaurantes a bons preços e das risadas dos amigos impressionados com o então baixíssimo preço da excelente gasolina venezuelana. O trajeto Boa Vista - Pacaraima era bonito de fazer cruzando sobre o rio Uraricoera, aquele do romance "Macunaíma" de Mário de Andrade que aliás tirou o nome do livro da tribo "makunaimi"que habita ali os entornos do Uraricoera e não gosta de ser fotografada.
A exuberância dessa viagem contrastava com a feiura da cidade fronteiriça brasileira cheia de taperas de madeira, casas de comércio mulambentas, contrabandistas e vendedores de pedras pseudo-preciosas. Pacaraima não tinha os atrativos que ficavam com Santa Elena na ocasião mais graciosa. Aliás não vi nenhuma menção a essa viagem Boa Vista até a fronteira feita por qualquer um dos muitos "repórteres" que percorreram esse trecho. Como se ele não existisse e os tais "profissionais" da notícia simplesmente se materializassem na fronteira. Sinal dos tempos onde as impressões-sensações do entorno parecem cada vez mais irrelevantes para a tal "notícia" geralmente manipulada. Pois eu cruzei essa fronteira acompanhado há 16 anos, andei mais de 1700 kms Venezuela adentro, contornei Caracas e cheguei a Puerto Ordaz e dali até Puerto la Cruz onde uma gigantesca balsa me levou até Isla Margarita.
Superficial ou não duas fortes impressões ficaram na minha memória sobre essa viagem. A primeira é que quando cheguei a Margarita vi pela primeira vez na vida uma manifestação-carreata de gente rica,"diferenciada" que paralisava o trânsito- num lugar chamado Pampatar- protestando contra o fim de alguns dos seus privilégios promovido pelo governo de Chavez. Ao verem o Palio branco, modesto entre tantas Suvs mas com placa do Brasil, me pararam e entupiram de prospectos contra o regime bolivariano . Aí então tive a certeza de que algo que a mídia não havia me mostrado até então acontecia na Venezuela e que mais dia menos dia não terminaria bem. E olha que ainda estávamos na época de ouro chavista.
A segunda impressão forte que me ficou foi ter entrado numa modesta salinha de uma casa na beira da estrada e ver o retrato de Chavez colocado num altar ao lado da Virgen de los Remédios .Depois vi a mesma cena, com pequenas variações, em quiosques comerciais,borracharias. Chavez era visto como um santo não pelas farmácias populares ,as cestas básicas gratuitas e outros benefícios. Já era claro em 2002 que se esticassem demais a corda entre ricos e pobres na Venezuela a cobra ia fumar.
Entre trancos e barrancos Chavez foi, morreu, entronizou Maduro que obviamente não tem nem as manhas e manias e muito menos a inteligência do seu criador. Somado a isso seus erros foram turbinados por um atroz boicote econômico dos EUA e seus aliados e hoje estamos nessa insanidade sobre um mar de petróleo que é o que interessa ao fim e ao cabo a Trump e a seus baba-ovos como Bolsonaro e o patético Ivan Duque, presidente da Colômbia.
Os amáveis leitores podem argumentar que minhas "impressões venezuelanas" são datadas. Sim, mas dão a dimensão de ter sentido de perto o povo daquele país via e vivia o chavismo fenômeno discutido e abordado de maneira superficial e generalista pela mídia tradicional.
Outro dia, numa rede social, um bolsonarista ao me ler defendendo uma cobertura isenta para a crise venezuelana me perguntou se eu conhecia o país. Ao responder que sim ele amuou e bem ao estilo dos "minions" disse que eu devia conhecer desde dentro de um hotel de luxo, não no meio do povo. Errado "minion" querido.Andei bastante pelo país . Suei pra burro andando nas ruas, vi praias lindas,tomei muito rum,dancei e comi arepas e quase fui morto por um tenente corrupto perto de San Ignácio quando não parei o carro num posto policial que só indicava que eu deveria reduzir a velocidade. Pelo meu "erro" , rifle engatilhado em punho, o tenente ladrão- com seu bigode de bandido de filme mexicano- e seus asseclas me tomaram uma grana maior do que paguei por uma semana de hospedagem em um bom hotel de Margarita. Era o exército de Chavéz.
Isso posto e para aqueles que acham que ainda assim faço uma defesa do regime bolivariano digo que aprendi viajando que nenhuma viagem pode ser generalista. E a regra se aplica como luva nessa patética cobertura que fazem da crise venezuelana onde colocam Maduro como o vilão valentão e Guaidó como o bom moço. Eu, quase velhote, só queria mesmo que me dessem uma cobertura isenta do que se passa por lá e não apenas essas poucas emoções baratas e raciocínios imperfeitos que o nosso sofrível jornalismo oferece. A Venezuela meus caros é muito mais que um mar de petróleo meus caros.É uma esfinge que em poucos tentando decifrar. E eu fiquei com vontade de tentar estando de novo lá em cima, em Pacaraima.
*Ricardo Soares é diretor de tv, roteirista, escritor e jornalista. Publicou 8 livros, dirigiu 12 documentários.
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Engenharia Cívil, Ciência da Computação, Direito (Graduação, Mestrado e Doutorado).