A espera é longa nas salas lotadas do hospital, mas aquelas pessoas são resignadas como poucas.
Por Pablo Pires Fernandes*
O micro-ônibus da Prefeitura Municipal de Virginópolis partiu às 23h rumo à capital, mais precisamente à Santa Casa. Levava 12 passageiros, a metade eram doentes para consultas ou algum tipo de atendimento e a outra metade, acompanhantes. A viagem até Belo Horizonte é longa – quase 300 quilômetros – e o desconforto era ainda maior por causa da tosse e dos gemidos que interrompiam o sono dos demais.
A espera é longa nas salas lotadas do hospital, mas aquelas pessoas são resignadas como poucas. Do lado de fora, motoristas de muitas cidades do interior se encontram para um café e compartilham histórias de desgraça e morte. Na porta do enorme edifício, ambulantes buscam ganhar o dia, vendendo biscoitos, frutas e as bugigangas chinesas mais recentes.
Dona Eunice e a neta Beatriz se dirigiram à seção de oncologia, que ocupa vários andares do prédio de 52 mil metros quadrados e por onde circulam cerca de 15 mil pessoas por dia. No corredor, o doutor Ildeu reconheceu a jovem, agora uma enfermeira formada pela UFMG. O encontro causou certo constrangimento a ambos, disfarçado em palavras simpáticas.
O médico seguiu pelo corredor e não pôde evitar a lembrança daquele dia em Virginópolis. A imagem da garota correndo aos prantos pela rua lhe surgiu nítida e a cena toda voltou-lhe à mente. O terror estampado nos olhos da adolescente, a repulsa diante de sua aproximação e seu esforço para tentar acalmá-la, enquanto seu corpo se encolhia contra o muro.
Recém-formado Ildeu morava há poucos meses em Virginópolis como clínico geral no posto de saúde. Fazia todo tipo de consultas e não era raro ter que fazer procedimentos além de sua experiência. O motivo do desespero daquela menina, porém, só lhe ficou evidente ao notar manchas de sangue no vestido. Foi difícil convencê-la de o acompanhar até o posto de saúde para examiná-la, mas ela cedeu diante do pavor de encarar os pais naquele estado.
Quando recobrou a consciência, Ildeu se surpreendeu ao notar-se numa cama do posto de saúde de Virginópolis. Agora aposentado da medicina, havia optado por morar na pequena cidade para viver próximo à família da esposa. Gostava do jeito pacato do interior e a vida não tinha mudado tanto desde que o tempo em que tinha feito residência ali, há mais de 40 anos.
Confuso e sozinho na enfermaria, tentou se levantar, mas desistiu. O corpo todo lhe doía e viu sangue em sua camisa. Um médico entrou no quarto e lhe ordenou que ficasse deitado para que pudesse fazer a sutura do corte na cabeça. Foram oito pontos, mas Ildeu não reclamou, ainda tentava entender o que ocorreu.
Da porta, a enfermeira lhe observava e, novamente, reconheceu Beatriz. Agora mulher madura, conservava o olhar de espanto de quando a socorreu na rua décadas atrás. O socorro, desta vez, foi ela quem ofereceu ao senhor. Ela contou que o encontrou caído na calçada e viu os assaltantes correndo com a carteira dele. Levou-o para o posto onde trabalhava. Ildeu lhe agradeceu, emocionado. Beatriz lhe disse que cuidar era sua profissão e lhe revelou, então, ter escolhido ser enfermeira depois de ter recebido os cuidados de Ildeu há mais de 40 anos.
*Pablo Pires Fernandes é jornalista. Trabalhou nas editorias de Cultura e Internacional nos jornais 'O Tempo' e 'Estado de Minas', onde foi editor do caderno Pensar. É diretor de redação do 'Dom Total'.
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