O farisaísmo que Jesus tanto combateu virou sinônimo de "boa conduta" de muitos católicos da atualidade
Mirticeli Medeiros*
Estamos num tempo de contradições. É uma espécie de mal dos tempos modernos. Após o advento das redes sociais, a retórica conta mais que o discurso coerente. Criam-se posturas para ganhar likes. Se pulverizam “opiniões” à revelia do bom senso. Mais acesso à informação e mais ignorância na mesma proporção. Mais espaço de fala e mais divisão. Mais liberdade e mais prisões ideológicas. O maniqueísmo instalou de novo o caos. E muitos católicos se deixaram levar por esses “modismos” político-partidários que, além de desacreditarem a religião, ameaçam sua missão profética.
O cristianismo, em muitas ocasiões, conseguiu arrebatar-nos de tantas “babilônias”. Mas parece que, dessa vez, são justamente os cristãos a alimentarem a maior das heresias morais: o farisaísmo. Voltamos à era na qual o preceito sobrepassa o encontro. Vendem o evangelho em troca de prestígio. Endeusam políticos, classificando-os como “enviados por Deus” para encherem os próprios bolsos. Transformam a liturgia em espaço de intransigência e propaganda desse ultramontanismo barato – sem papa, però. Expurgam o sumo pontífice – que para os católicos é vigário de Cristo – e permitem que seu nome se misture aos palavrões dos falsos profetas.
A obsessão por essa estética estéril e excludente – que não nos remete à beleza, mas é uma expressão máxima do culto ao ego –, ameaça a beleza inegociável do cristianismo: nossa casa é casa de todos. A praça de São Pedro, arquitetada engenhosamente por Gian Lorenzo Bernini para simbolizar a Igreja que abraça mundo, exprime isso. Mesmo que naquela época a instituição não gozasse tanto dessa prerrogativa, esse monumento nos remete à essa essência.
Lembro-me bem que até uns anos atrás, desrespeitar o papa era típico do mau católico ou “coisa da mídia”. Hoje em dia, é o “papista” – usando uma terminologia do século 16 – a ser perseguido pelos próprios católicos. Os mesmos católicos brasileiros que questionaram a orientação do governo italiano de suspender as missas públicas durante a pandemia flertam com a monarquia. Sentem falta do padroado, será? Não parece muito preocupado com a liberdade da Igreja quem cede a esse constantinismo, uma tendência que ao longo da história instrumentalizou da religião para fins políticos. Contradição pura.
Poderíamos passar o dia inteiro elencando contradições. Sem dúvida alguma, à medida que você foi lendo o texto, vieram-lhe à mente algumas dessas incoerências. São muitas. Fariseus travestidos de cristãos. “Doutores da lei” e propagadores dos bons costumes que fecham os olhos para as injustiças sociais. “Defensores da fé” que semeiam a divisão entre os católicos. “Pró-vidas” que acreditam que a vida dos idosos importa bem menos e fazem arminhas com as mãos. “Fiéis a Roma” que ignoram o bispo de Roma. “Amantes da liturgia” que se revoltam com as missas virtuais – celebradas assim por motivo de força maior –, esvaziando todo o sentido da Eucaristia. “Memorizadores de documentos” que mal leem o Evangelho. Os católicos da contradição.
*Mirticeli Dias de Medeiros é jornalista e mestre em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Desde 2009, cobre o Vaticano para meios de comunicação no Brasil e na Itália e é colunista do Dom Total, onde publica às sextas-feiras.
O texto reflete a opinião pessoal do autor, não necessariamente do Dom Total. O autor assume integral e exclusivamente responsabilidade pela sua opinião.
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