'I know this much is true' é um marco da televisão
Alexis Parrot*
I know this much is true é a prova concreta da importância de se escolher bem um elenco. A minissérie da HBO, dirigida por Derek Cianfrance, poderia ter virado um dramalhão mexicano, mas segura as pontas o tempo todo, principalmente por causa de seus atores e atrizes, dando verdade inequívoca a cada linha do roteiro.
Puxando o cordão, Mark Ruffalo é pule de dez para todo e qualquer prêmio televisivo da temporada.
O intérprete do Hulk abandona temporariamente o parque de diversões adolescente da Marvel para viver o papel dos sonhos de qualquer ator: dois gêmeos idênticos, um deles com sérios problemas psicológicos. Como boa cria do Actor's Studio, Ruffalo segue à risca as exigências do "método" e, com abnegação memorável, atinge o ponto alto de sua carreira.
Após completar as cenas em que vivia Dominick (a contraparte sã da dupla, mas emocionalmente em frangalhos), a produção foi interrompida durante um mês e meio para que pudesse engordar e, aí sim, filmar o outro lado da moeda, todas as sequências com o outro irmão.
Como no livro em que se origina, a série começa com forte episódio. Obedecendo a vozes que martelam dentro de sua cabeça, Thomas, o irmão esquizofrênico, decepa a própria mão em uma biblioteca pública; para ele um sacrifício necessário para impedir a guerra do Golfo, capitaneada por Bush pai no início dos anos 90. Como familiar responsável, Dominick é obrigado a decidir se a mão deve ser reimplantada, apesar dos gritos desesperados do irmão para que a operação não seja feita. Mesmo na alucinação, sua coerência é invejável.
As provas a que Dominick é submetido começam aí e vão se acumulando, não importa se no tempo presente ou passado. Por meio de sofisticada e bem urdida narrativa, descobrimos em flashbacks que remontam à infância e à juventude dos gêmeos não só a progressão com que a sanidade de um foi se perdendo, mas também o fardo que isso passou a significar para o outro. Sempre dividido entre seguir o próprio caminho e a responsabilidade de cuidar do irmão, o protagonista acaba não conseguindo a plenitude nem de um coisa, nem de outra.
O buraco existencial onde o personagem se encontra é resultado de referências embaralhadas, a começar pela identidade paterna, nunca revelada pela mãe. Filha de um imigrante italiano, aprendeu a levar a sério o conceito da omertà siciliana e apenas com sua morte o segredo familiar começa a ser desvelado.
O menino Dominick foi alimentado desde a infância com uma narrativa épica sobre o avô, enquanto era obrigado a lidar com a personalidade opressiva e nada heroica do padrasto. Ao mesmo tempo, assumindo o papel ora de irmão, ora de pai para o perturbado Thomas, seu crescimento resultou em eterno tatear no escuro, oprimido pela dinâmica familiar.
Adulto, trabalha como pintor de paredes na mesma cidade de Three Rivers, em Connecticut, onde nasceu e de onde, adolescente, jurou que sairia para nunca mais voltar. Cheio de derrotas na vida pessoal, parece ter se resignado ao fracasso. O ir e vir de seu carro sobre uma ponte pênsil, leitmotiv incessante, é o símbolo dessa vida desperdiçada que segue para lugar nenhum sob um céu repleto de nuvens carregadas.
Marca indelével da filmografia de Derek Cianfrance, os tons cinza-azulados seguem presentes, tanto na fotografia quanto na temática. A trajetória de personagens desajustados com relações familiares conflituosas são o assunto principal para onde o diretor vem apontando sua câmera filme após filme. Esta primeira incursão pela televisão coroa aquilo previamente desenvolvido em trabalhos como O lugar onde tudo termina e Namorados para sempre: uma ode à melancolia com espasmos de violência – duas instâncias interligadas umbilicalmente segundo sua visão de mundo.
Em comparação, esta I know this much is true, aprofunda a tese do diretor porque desloca o eixo da narrativa. Por mais que arroubos de agressividade pontuem a ação do protagonista, a violência maior a ser combatida agora não está mais à flor da pele. Está fora, representada pelo sistema viciado que enclausura o irmão ou pela insanidade maior da perspectiva de mais uma guerra inútil; e está dentro – no seio familiar e na culpa, íntima e avassaladora, que leva à imobilidade.
Se é a família a célula formadora central de nossa personalidade, com tudo que pode oferecer em termos de acolhida e orientação, resta clara a impossibilidade de sairmos ilesos de tudo aquilo que ela nos joga nas costas – muitas vezes mais que legado, um fardo; mais que raiz, uma âncora; mais que memória, uma assombração.
Em correntezas tão revoltas ninguém pode navegar sozinho eternamente. Obrigado a sessões de psicanálise para aliviar a difícil situação do irmão, Dominick encontra afinal o amparo necessário para se reerguer. O processo de autoconhecimento em que mergulha é uma luz no fim do túnel. Para encontrar respostas, é necessário que se faça as perguntas certas.
Definitivamente, trata-se de uma obra conduzida por homens: Wally Lamb, o autor do livro de onde o programa se origina, seu ator principal e diretor (todos também produtores executivos); discute memória, tradição e família, e o que significa ser homem no meio disso tudo. A partir da visão do protagonista e as várias versões de si que vai acumulando à medida que o tempo passa (filho, irmão, marido e pai), a série faz um retrato sincero e pungente da masculinidade e seus desafios.
Desnudados de todas as regalias e privilégios concedidos milenarmente, o que nos sobra como homens? I know this much is true nos oferece a chance de um mea culpa e convida a reencontrar, talvez, algo de essencial que tenha ficado pelo caminho.
*Alexis Parrot é crítico de televisão, roteirista e jornalista. Escreve às terças-feiras para o DOM TOTAL.
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Engenharia Cívil, Ciência da Computação, Direito (Graduação, Mestrado e Doutorado).