01/12/2020 | domtotal.com
Política, crime e fantasia no primado do streaming
Alexis Parrot*
Para muitos, o ano 2000 era o marco simbólico da chegada do futuro. Em um piscar de olhos, vinte anos se passaram desde a virada do século e seguimos vivendo mais ou menos do mesmo jeito, sem os carros voadores dos Jetsons ou contatos imediatos de terceiro grau. O futuro continua adiante - assim como continuamos sentados em frente à televisão.
Se as duas últimas décadas testemunharam uma infestação de reality shows na TV, por outro lado a ficção não esmoreceu e soube refletir as contradições e desafios dos tempos em que vivemos. Questões de gênero como o protagonismo feminino e a visibilidade de subjetividades trans ganharam espaço, ecoando pautas colocadas como prioritárias na agenda política do mundo ocidental.
Enquanto o cinema foi tomado de assalto por super-heróis e monstros, coube à TV marcar posição e dar voz à diversidade, abraçando a negritude e a comunidade LGBTQ+, além de quebrar antigos mitos e preconceitos de temas como autismo, suicídio juvenil e transtornos mentais, tratados com humanidade e sem condescendência.
Ao mesmo tempo em que as epopeias históricas atiçaram novo interesse, as distopias invadiram de vez nosso imaginário, revelando insatisfação com o presente e algum temor pelos caminhos que vamos tomando. A situação dos refugiados é assunto recorrente, na ficção ou no documentário - que ganha cada vez mais janelas de exibição nos streamings da vida.
Graças à revolução da internet, outra marca do novo milênio diz respeito à maior circulação de conteúdos em outras línguas que não a inglesa; benéfico efeito colateral da concorrência entre os serviços de streaming. Pelo mesmo motivo, torna-se cada vez maior o acesso a produções de origem geográfica que extrapolam Europa e EUA, com destaque para a América Latina e, mais recentemente, a África.
Seguiram firmes como gênero o policial e o crime, porém, com uma novidade: o nordic noir caiu no gosto do público (virá da Escandinávia o próximo Sherlock Holmes?). O futuro imediato aponta para uma retomada massiva do universo da fantasia, após o êxito de Game of thrones. Fora isso, médicos e hospitais parecem nunca sair de moda.
Em ordem decrescente, a lista das vinte e uma melhores séries do século 21.
21) Lost - ABC (2004-2010)(Reprodução Adoro Cinema)Nem mesmo o desfecho decepcionante apagou o brilho da premissa e reviravoltas inimagináveis desta Ilha de Gilligan atolada até o pescoço no fantástico. Isolados em território inóspito e com o passado à espreita, os sobreviventes de um acidente aéreo descobrem a cada novo passo que nada é o que parece ser em uma ilha aparentemente deserta no Pacífico. Fenômeno de público que consagrou J.J. Abrams, levando-o ao comando das franquias de cinema Star Trek e Star Wars.
(Disponível no Globoplay)
20) Dix pour cent - France2 (2015-)
(Copyright Mon Voisin Productions/Mother Production/Ce Qui Me Meut)Enquanto acompanhamos o dia a dia de uma agência de talentos no coração da cidade luz, o verbo francês jouer é flexionado no limite para abranger todos os significados possíveis (jogar, brincar, representar, arriscar, expor-se...). Grandes nomes do cinema como Binoche, Huppert, Luchini, Adjani e Dujardin interpretam versões ficcionais e pouco lisonjeiras de si mesmos e o resultado é um divertido e bem-vindo exercício de dessacralização da fama e do culto à celebridade.
(Disponível na Netflix)
19) Broadchurch - ITV (2013-2017)
(Copyright ITV)O gênero policial respira novos ares após esta subversão do whodunit. O "quem matou?" é mero subterfúgio para que uma cidadezinha à beira-mar no sul da Inglaterra tenha as entranhas dissecadas, exibindo os esqueletos escondidos de uma comunidade aparentemente feliz. A rainha Olivia Colman e o Doctor Who David Tennant interpretam brilhantemente os policiais que investigam o homicídio de um adolescente. O sucesso da abordagem sensível da série abriu caminho para programas similares como Happy Valley e Unforgotten.
18) A ponte - SVT / DR (2011-2018)
(Reprodução/ Den of Geek)Um corpo deixado no meio exato da ponte de Öresund - que liga a Suécia à Dinamarca - obriga uma investigação conjunta entre os dois países. Destacados para a missão, um policial veterano dinamarquês e uma introspectiva geniazinha da dedução sueca, com características típicas dos portadores de Asperger. Laços de amizade se formam, enquanto lições de vida são dadas de parte a parte. Após quatro temporadas, fica a pergunta inevitável: o que é "normal"?
(Disponível no Canais Globo)
17) Pose - FX (2018-)
(Reprodução Adoro Cinema)Importante retrato ficcionalizado da cena queer novaiorquina dos anos 1980, no auge da epidemia da AIDS, recriando a atmosfera dos salões de baile onde gays e transgêneros das comunidades negra e latina podiam se expressar livremente. Além do drama televisivo apaixonante, o produtor Ryan Murphy gerou potente manifesto contra o preconceito. Com um elenco admirável de atores e atrizes trans (mais o icônico Billy Porter), a produção fez história ao escalar a primeira mulher trans e negra para dirigir um episódio de TV nos EUA. (Disponível na Netflix)
16) Halt and catch fire - AMC (2014-2017)
(Reprodução/ Adoro Cinema)Ambientada nos anos 1980, a série parodia fatos reais da história da tecnologia (do advento do computador pessoal à internet) para construir uma metáfora do sonho americano. Para nós, pobres mortais, essa história de software, hardware e sistemas operacionais não passa de um grande enigma, porém, a série consegue nos convencer que há mesmo algo de poético nisso tudo. Um dos protagonistas sintetiza a velocidade do mundo contemporâneo: "É incrível como tanta coisa mudou em tão pouco tempo... e quanta coisa continua igual". (Disponível no Globoplay)
15) Suburra - Netflix (2017-2020)(Reprodução/ Adoro Cinema)A tragédia grega toma as ruas de Roma, movimentando os três pilares que dominam a cidade: o crime, a política e o Vaticano. A sangrenta guerra pelo poder não poupa nem a família, atropela princípios e extermina reputações, além de reviver um antigo esporte romano que Julio César conheceu bem: a traição. Primeira produção italiana da Netflix, a série ancora seu êxito no roteiro denso e primoroso, na ação realista e no carisma do elenco. (Disponível na Netflix)
14) Ela quer tudo - Netflix (2017-2019)
(Reprodução Adoro Cinema)Baseada no primeiro longa metragem de Spike Lee, desenvolvida e dirigida pelo próprio, a série é um marco em vários sentidos. A jovem Nola Darling vive em um Brooklyn gentrificado e divide-se entre três namorados e uma namorada, enquanto tenta fazer a carreira decolar. O mercantilismo da arte, amor e relacionamentos no mundo atual e o protagonismo negro na sociedade são feridas abertas em que o diretor enfia o dedo. Escritoras negras dividem o roteiro com Lee, que traz para a TV sua estética virulenta e original. (Disponível na Netflix)
13) Patrick Melrose - BBC (2018)(Divulgação/ BBC)A ironia e o cinismo recheiam os diálogos dignos de um Noël Coward. O desajustado Melrose (Benedict Cumberbatch), rico e perdulário, decide largar as drogas e a bebida após a morte do pai mas, com o passar dos anos, a decisão vai sendo cancelada e novamente tomada. Aos poucos, toma consciência dos traumas sofridos na infância, graças à indiferença da mãe e aos abusos do pai. Baseada nos romances semiautobiográficos do inglês Edward St. Aubyn, a série é ácida, mas terna ao falar de temas pesados como a morte, a eutanásia e o amor.
(Disponível no Globoplay)
12) Mad Men - AMC (2007-20015)
(Reprodução Adoro Cinema)O cinismo nunca foi tão elegante. Os bastidores de uma agência de publicidade da Madison Avenue na Nova York nos anos 1950 servem como porta de entrada para o mundo machista e de aparências do american way of life do pós-guerra. Jon Hamm, impecável no papel do desajustado publicitário Don Draper, leva a profissão aos extremos e mente que nem sente, em casa ou no trabalho. Se a série se passasse nos dias de hoje, estaria provavelmente redigindo fake news para espalhar nas redes sociais. (Disponível no Amazon Prime)
11) Fleabag - BBC (2016-2019)
(Divulgação BBC)A protagonista sem nome da série é a síntese feminina do millenial que não deu certo. Pode parecer estranho à primeira vista, mas elementos como uma relação conturbada com a família, a falta de horizonte profissional e o fracasso no campo romântico/sentimental são a matéria-prima para que Phoebe Waller-Bridge (autora e atriz principal do programa) faça um raio-x dos anseios e ansiedades de toda uma geração, nos matando de rir de quebra. O primeiro episódio da segunda temporada é obra-prima. (Disponível no Amazon Prime)
10) Downton Abbey ITV (2010-2015)
(Copyright HBO)Os lordes e a classe trabalhadora vivem harmonicamente (na medida do possível e do que manda a fleugma britânica) na propriedade da família Crawley na Inglaterra pós-eduardiana, nos movimentados anos 1910 e 1920 do século passado. Criada e totalmente escrita pelo oscarizado Julian Fellowes, a série é opulenta no visual, porém aconchegante no carinho que o autor demonstra por seus personagens. Os diálogos são deliciosos - como também a presença de Maggie Smith no elenco. (Disponível no Amazon Prime)
9) The handmaid's tale - Hulu (2017-)
(Copyright Hulu)Distopia baseada no livro homônimo da canadense Margaret Atwood, a série imagina os EUA governados por um grupo fundamentalista cristão, após uma epidemia de infertilidade. Professores, intelectuais e homossexuais são executados e as mulheres passam a ser consideradas cidadãs de segunda classe. Aquelas ainda férteis são chamadas de aias e obrigadas a gerar os filhos dos donos do poder. Em tempos de #metoo, Elisabeth Moss oferece uma das melhores performances da década na pele da aia rebelde que irá desafiar o regime. Disponível no Globoplay)
8) Stranger things - Netflix (2016-)
(Copyright Foto: Divulgação Internet)Uma agência governamental secreta consegue acessar outra dimensão, libertando forças sobrenaturais na cidadezinha de Hawkins. Neogoonies unem-se a adultos de boa vontade (incluída aí uma revivida Winona Ryder) para salvar o dia, enquanto passeamos nostalgicamente pelos anos 1980. Além de todos os perrengues trazidos pela adolescência, a rapaziada irá enfrentar bichões do naipe de um Demogorgon. A inspiração vem dos livros de Stephen King e o destaque maior, a personagem paranormal Onze. (Disponível na Netflix)
7) Years and years - BBC/HBO (2019)
(Copyright BBC)Esqueça Black Mirror. Esta é a mais assustadora distopia entre todas da televisão - talvez por trazer teses bastante factíveis. A ascensão ao poder de uma política populista de direita no Reino Unido (Emma Thompson, em atuação memorável) puxa o fio de uma narrativa que mistura refugiados, privacidade na era digital, racismo e preconceito, inteligência artificial, bombas atômicas e até transhumanismo. No proscênio da ação, quinze anos da trajetória de uma família de Manchester com seus dramas e peculiaridades. (Disponível no HBO GO)
6) The wire - HBO (2002-2008)
(Copyright Home Box Office (HBO)O gênero policial como alegoria para discutir desigualdade social e as falhas do sistema. Quando uma rede policial de inteligência é finalmente montada para desbaratar uma grande quadrilha de tráfico, a burocracia e interesses conflitantes das instâncias superiores se tornam obstáculos para a execução do plano. Ao longo das cinco temporadas, outros temas relevantes foram focalizados (como a corrupção portuária ou a responsabilidade da mídia). A sofisticada estrutura dramática e os diálogos realistas são o grande diferencial da série. (Disponível no HBO GO)
5) Twin Peaks: o retorno - Showtime (2017)(Suzanne Tenner / Showtime)David Lynch e Marc Frost retomaram trama e personagens da cultuada série para marcar mais uma vez a história da televisão. Criaram novas mitologias e revolucionaram esteticamente um meio cuja relevância artística é questionada desde sua criação. O agente especial Dale Cooper (Kyle MacLachlan) consegue voltar à nossa dimensão e reencontra até mesmo a falecida Laura Palmer. A manipulação narrativa do tempo nunca ousou ir tão longe: Twin Peaks é a única série que consegue ser prequel, sequel e spin-off de si mesma. (Disponível na Netflix)
4) The office EUA - NBC (2005-2013)
(Copyright NBC Universal)Steve Carell deveria ser o primeiro ganhador do prêmio Nobel da comédia televisiva se um dia passarem a concedê-lo. Sem as amarras de comediante respeitado a que se sujeita hoje, sua atuação na série é digna dos momentos mais amalucados dos Irmãos Marx. Sem noção, sem escrúpulos e sem dignidade, seu Michael Scott é a estrela d'alva que cintila mais forte no meio da constelação escolhida para ocupar os escritórios da filial de Scranton da fictícia Dunder Mifflin. Com humor impagável e insano, critica o mundo corporativo, as instituições e as pequenas relações de poder entre patrões e empregados. Caso raro em que o remake supera o original britânico. (Disponível no Amazon Prime)
3) Breaking bad - AMC (2008-2013)
(Reprodução Adoro Cinema)O filme noir sob sol a pino. Walter White, de professor de química diagnosticado com câncer e com poucos meses de vida a cozinheiro de metanfetamina e chefe do tráfico temido do Novo México. A vida dupla coloca em risco sua própria família e desperta uma ganância até então desconhecida. Uma galeria de grandes personagens e a impossibilidade de redenção conduzem a série a um dos desfechos mais corajosos e impactantes já vistos na TV. (Disponível na Netflix)
2) Game of thrones - HBO (2011-2019)
(Copyright HBO)Starks, Lannisters, Baratheons e a última descendente dos Targeryen lutam pelo trono de ferro de Porto Real, a capital dos sete reinos de Westeros. Quem imaginaria que um mundo fantástico de tintas medievais, habitado por dragões, cavaleiros, gigantes, zumbis, bruxas e médiuns acabaria rendendo uma das mais bem-sucedidas séries de todos os tempos? Depois dela, todo mundo quer surfar na mesma onda. Prepare-se: a próxima década promete (além da prequel já programada) muita bruxaria e fantasia. (Disponível no HBO GO)
1) Família Soprano(Reprodução Adoro Cinema)Ainda o principal diapasão, afinando e determinando os caminhos da produção ficcional televisiva do século XXI. A crise de ansiedade que levou à terapia o mafioso de Nova Jersey virou em nossas cabeças a chave que o réveillon do milênio não conseguiu. O futuro não chegou, mas os fundamentos de uma nova ficção na TV foram definidos a partir de Tony Soprano. Se o que vem em seu rastro já conhecemos, a curiosidade maior é ver no que consistirá uma era pós-Sopranos na televisão. (Disponível no HBO GO)
Menções honrosas: A sete palmos, Trapped, Veep, Battlestar Galactica e House of cards.
*Alexis Parrot é crítico de TV, roteirista e jornalista. Escreve às terças-feiras para o Dom Total
Você quer receber notícias do domtotal em seu e-mail ou WhatsApp?
DomTotal é mantido pela EMGE - Escola de Engenharia e Dom Helder - Escola de Direito.
Engenharia Cívil, Ciência da Computação, Direito (Graduação, Mestrado e Doutorado).