03/08/2021 | domtotal.com
Bom-mocismo pode render boa comédia?
Alexis Parrot
Em recente artigo publicado no New York Times (e traduzido pela Folha no domingo passado), o crítico de TV James Poniewozik defende a tese de que o estilo narrativo da televisão sofreu uma transição nos últimos vinte anos, substituindo a ironia pela sinceridade.
Se antes os programas usavam as atitudes de seu protagonista para dizer exatamente o oposto, hoje o discurso é direto e os personagens refletem de forma clara a mensagem que os autores desejam passar. Como marco desses dois momentos, destacariam-se respectivamente a série The Office em sua ácida matriz britânica e a comédia esportiva Ted Lasso, lançada em 2020 pela Apple TV+.
Cansada de anti-heróis e personagens repulsivos, a TV (e o interesse do público) teria migrado para o território do bom-mocismo e do sentimentalismo, tanto no drama quanto na comédia. O técnico de rúgbi Ted Lasso, exportado dos EUA para a Inglaterra para assumir um time de futebol decadente, seria o santo padroeiro e expressão maior deste novo perfil de protagonista.
Ainda segundo Poniewozik, pistas para entender este deslocamento podem estar na cultura do cancelamento imposta pelas redes sociais e na própria transição da política norte-americana da era Trump para a hora e a vez de Joe Biden. A natureza conciliatória e empática do novo ocupante da Casa Branca e seu governo (diametralmente oposta à de seu antecessor) é sinal do tempo que vivemos tanto quanto tenta influenciar nossos costumes e posicionamentos.
Embora tudo faça muito sentido, o seu postulado orbita apenas em torno do próprio umbigo. Demasiadamente autocentrado, acaba por espelhar a própria premissa da série que anuncia como novo paradigma televisivo - a ponto de não conseguir enxergar suas inúmeras deficiências ou mesmo o que esta carrega de comprometimento ideológico.
A título de explorar comicamente o choque cultural, a série não esconde um olhar de superioridade sobre costumes e expressões idiomáticas típicos dos britânicos (ou sobre alguns clichês geralmente a eles atribuídos). Se narrativamente toda Londres rejeita o treinador Lasso, rindo de sua filosofia de vida e das raízes fincadas no meio-oeste dos EUA, o programa em si faz precisamente o oposto.
No frigir dos ovos, é a ex-colônia que está rindo da antiga metrópole, ridicularizando até o futebol em detrimento do rúgbi.
Com seu irritante otimismo, Ted Lasso não é outro Maxwel Smart, cuja graça residia nas missões de espionagem cujo sucesso se dava única e exclusivamente por sorte, a despeito da imbecilidade crônica do agente 86. O treinador vivido pelo ex-Saturday Night Live Jason Sudeikis não é burro, apenas inadequado, mas porque bem-intencionado vai conseguindo se manter de pé.
A série incorpora um aspecto fundamental da cultura dos EUA, independente de quem for o presidente ou líder do momento: a incapacidade de rir de si mesmo. Por se darem assim tanta importância, riem do outro.
Não por acaso, o personagem mexicano Dani Rojas é apresentado como um bom selvagem, jogador habilíssimo mas pintado com tintas exóticas, como se saído de um mural de Diego Rivera e imbuído de infantilidade digna dos moradores da vila do Chaves.
Quem for atrás da série devido ao interesse pelo futebol irá se decepcionar - porque ela apenas parece ser sobre esporte. O que acontece em campo é o que menos importa, tudo ali opera em função de uma mensagem de autoajuda expressa nos ares de palestrante motivacional do técnico Lasso.
Com tantas fórmulas e manuais à disposição para atingir o sucesso, a exploração da vã esperança de que basta querer para melhorar de vida significa um rentável mercado, além de parte fundamental do american way of life. A retórica da autoajuda serve ao individualismo capitalista e tenta ressuscitar artificialmente a ideia falida do "sonho americano".
O que o crítico do New York Times chama de "sinceridade" não passa de propaganda ideológica. Por trás de um verniz de inocência e boas intenções, Ted Lasso simplesmente referenda tudo aquilo que parece repudiar.
E, pecado dos pecados em se tratando de comédia, nem consegue ser engraçado.
*Alexis Parrot é crítico de Tv, roteirista e jornalista. Escreve às terças-feiras para o DOM TOTAL
O texto reflete a opinião pessoal do autor, não necessariamente do Dom Total. O autor assume integral e exclusivamente responsabilidade pela sua opinião.
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