Lutar contra as estruturas que geram a pobreza é dever cristão. Privar-se disso é não compreender a mensagem de Jesus
Fabrício Veliq*
É muito comum se falar sobre os pobres ao mencionar os Evangelhos. Dentre eles, talvez o que mais traga essa questão seja o de Lucas. O evangelista, ao longo de todo seu grande livro, dividido em dois tomos (Lucas e Atos), faz questão de mostrar a categoria do pobre para mostrar a íntima conexão que há entre o Reino de Deus e o fim da pobreza.
Exemplos são muitos. Desde os primeiros capítulos, conforme nos mostra Alberto Casalegno, Lucas já expõe aqueles que não possuem nem mesmo uma túnica para si (Lucas 3,11). A imagem do mendigo Lázaro, que está à porta do homem rico e abastado; ou do rico que, diante da afirmação de Jesus de que seria necessário que ele abrisse mão de sua riqueza e a desse aos pobres para alcançar o Reino de Deus, sai tristíssimo por ser dono de grande propriedade; ou ainda da viúva pobre que deu tudo o que tinha, enquanto os ricos davam do que lhes sobrava, mostram como que o evangelista coloca em contraste os pobres e os abastados.
Como também nos aponta Casalegno, no Evangelho de Lucas a pobreza não é uma categoria abstrata, mas concreta. Portanto, não se trata de algo meramente espiritualizado, numa ideia de que tais pessoas seriam somente "pobres de espírito". Antes, o pobre é aquele que realmente sofre a carestia até de elementos básicos para sua sobrevivência.
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Mesmo que seja possível dizer com Casalegno que, ao longo de seu texto, Lucas reinterprete as categorias de ricos e pobres - fazendo com que a esta se refira aos discípulos de Jesus, enquanto aquela aos judeus, dado o conflito entre esses dois grupos na Palestina do primeiro século - é notória a presença de pessoas com boas condições financeiras na comunidade de Atos.
Os exemplos estão presentes no capítulo 4 deste livro, em que se relata que várias pessoas vendiam suas propriedades e davam aos mais pobres, de modo que não houvesse carestia entre os membros da comunidade.
Tal narrativa, por sua vez, nos faz perceber que o evangelista parece ter em mente que no Reino de Deus a pobreza não deve existir. Não deve haver quem necessite do básico para viver, assim como não deve haver pessoas que se apegam tanto ao dinheiro a ponto de deixar seu irmão com carência de algo.
O caso de Zaqueu, narrado em Lucas 19, mostra-se bastante emblemático. O evangelista, narrando o encontro do cobrador de impostos com Jesus, ressalta a restituição proposta por Zaqueu. Curiosamente, somente após sua atitude de dar aos pobres metade de seus bens, bem como de restituir quatro vezes mais aquilo que roubou, é que Jesus afirma que a salvação entrou naquela casa. Em outras palavras, como nos aponta Casalegno: "O texto de Lucas sublinha que, só depois da decisão honesta de conversão de Zaqueu (v.8), a salvação entra em sua casa (v.9)".
Diante desses pequenos exemplos tirados dos textos de Lucas dá para perceber o lugar que o pobre ocupa em seu evangelho. Em contraste a isso, suas diversas narrativas ressaltam o papel que a pessoa cristã deve ter na luta contra as estruturas que geram a pobreza.
O Reino de Deus é aquele no qual não há carestia por parte de ninguém, não há desigualdade social e todas as pessoas são iguais em seus direitos. Estar atento a essa mensagem cristã, tão presente no evangelho lucano, é fundamental para o anúncio de uma boa nova que faça sentido para as pessoas de nosso tempo, principalmente em um momento em que se aumenta a pobreza em nosso país e no mundo, fruto de uma economia neoliberal.
Lutar contra as estruturas que geram a pobreza é dever cristão. Privar-se disso é não compreender a mensagem de Jesus.
*Fabrício Veliq é protestante e teólogo. Doutor em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Belo Horizonte (FAJE), Doctor of Theology pela Katholieke Universiteit Leuven (KU Leuven), Bacharel em Filosofia e Licenciado em Matemática (UFMG). É coautor do livro: Teologia no século 21: novos contextos e fronteiras. Editora Saber Criativo. E-mail: fveliq@gmail.com. Site: www.fabricioveliq.com.br.
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Engenharia Cívil, Ciência da Computação, Direito (Graduação, Mestrado e Doutorado).